Vestígios

[Texto por Ricardo Maurício - Artista plástico, professor do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre e doutor em História da Arte na Área de Linguagens Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ.]

Procissões, blocos de carnaval, eventos folclóricos - são imagens assim, de coletivos humanos em festa, que nos acostumamos a ver nas fotografias de Marcio RM.

As séries dos caiçaras, das festas de São Benedito e da Banda de Ipanema, entre outras, revelam um olhar que se detém, se interessa pelo outro, não para registrar friamente uma realidade visual diferente, mas para fazê-lo como resultado de um envolvimento total, que faz de fotógrafo e fotografados uma só unidade, diria, afetiva.

Dono de uma curiosidade inesgotável, esse olhar nômade, faminto, perambula pelo Brasil equipado com uma disposição invejável, que parece não querer deixar nada - ou melhor, ninguém - por ser fotografado. Como disse Roland Barthes, “a vidência do fotógrafo não consiste em ver, mas em estar lá”.

Entretanto as fotografias da série atual nos surpreendem; belas sem dúvida, perigosamente no limite do pictórico, elas desviam para outros trechos do real nossa expectativa: a ausência do humano soa como um silêncio profundo e intrigante.

Obviamente, não se trataria aqui de se cobrar uma coerência que restringisse a generosidade desse olhar a um determinado campo temático, afinal a grandeza da fotografia está justamente em ter o mundo todo à sua disposição. Mesmo assim, ficamos ligeiramente perplexos: onde a algazarra, a festa, a percepção brilhante do momento único do clique que fixa o encontro, o beijo, o transitório, o irrepetível, para nos oferecer em imagens tão ricas quanto refinadas? Subitamente, no entanto, numa segunda mirada, o enigma se esclarece: é ainda de gente que, agora sutil, alegoricamente, essas imagens falam: são ainda presenças do humano - procissões ou indivíduos, com suas rugas e sinais de expressão - mas que aqui se apresentam como vestígios, lembranças de existências passadas suspensas no tempo, tempo silencioso das imagens fotográficas.

Fecha-se então o ciclo da compreensão: pois não é e terá sido sempre esta a vocação primeira da fotografia, desde a silenciosa Paris de um Atget, passando pelo antigo costume de fotografar aqueles que haviam acabado de morrer, isto é, a tentativa de deter através da dupla distância inexorável, no tempo e no espaço, a perda, a ausência, reafirmando que “aquilo foi, estava lá” (ça y est), já que, simultaneamente, “há sempre nela esse signo imperioso de minha morte futura?

Podemos concluir então: essas imagens descarnadas das fotografias da série atual de Marcio RM, em que a luz aquarela sombras sobre telas de areia em jogos rítmicos de uma plasticidade quase abstrata, espelham também a própria condição fundamental, existencial e intransferível da fotografia, aquela que reafirma a cada novo olhar: estivemos aqui.

Vivemos.

Vimos.

E fotografamos.

Vestígios

Vestígios